A compreensão, desde os bancos escolares, das questões de interesse coletivo dos cidadãos, que devem ser de responsabilidade do Estado, daquelas que são próprias dos indivíduos, são pré-condições básicas para que as pessoas adquiram comportamentos e atitudes éticas, nas relações com as instituições públicas.
A entrevista aborda com precisão questões que, a meu juízo, deveriam pautar os debates nas escolas, universidades e nos ambientes sociais para que, efetivamente, forjem consciência crítica, valores e princípios permanentes em cada brasileiro.
Leiam a integra do artigo e a entrevista no link:
Reproduzo cópia do artigo completo, abaixo.
Brasil está aprendendo a separar o público do privado
O Brasil ainda enfrenta sérias dificuldades quando o assunto é separar o interesse público e o interesse privado. Mas embora esta seja uma questão recorrentemente representada em notícias de prática de nepotismo, irregularidades em licitações, etc., é matéria na qual o Brasil está amadurecendo e já alcançou alguns avanços significativos. Assim pensa o constitucionalista Luís Roberto Barroso.
Em entrevista à Consultor Jurídico, após a cerimônia de entrega do Prêmio Mendes Júnior de Monografias Jurídicas, que este ano discutiu “Desenvolvimento e Estado de Direito no Brasil: cumprimento de contratos versus Razão de Estado", Barroso disse que historicamente o Brasil enfrenta disfunções que prejudicam uma boa equalização entre a coisa pública e a privada, entre eles o patrimonialismo, que foi herdado de nossos colonizadores portugueses.
Mas ele tem esperança no país. Nos trabalhos analisados para o prêmio, segundo Barroso, é recorrente a ideia de que o Estado deve ser correto e agir com boa-fé objetiva. “Isso parece um truísmo, uma obviedade, mas eu acho que levado ao pé da letra seria uma revolução profunda e silenciosa no Brasil”, declarou.
Luís Roberto Barroso, além de advogado constitucionalista, é professor titular de Direito Constitucional, doutor e livre-docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e mestre pela Yale Law Scholl. Na entrevista, ainda afirmou que o fato de o presidente Lula não ter cogitado um terceiro mandato mostra que o Brasil superou os ciclos do atraso, uma vocação golpista e de quebra da legalidade.
Leia a entrevista:
ConJur — Como o senhor analisa a relação jurídica entre o Estado e setor privado?
Luís Roberto Barroso — Existe três disfunções historicamente relevantes nesta questão que nós temos enfrentado e procurado superar. O patrimonialismo, o oficialismo e o autoritarismo. Mas o grande responsável pela dificuldade do Brasil equalizar a coisa pública e a privada é o patrimonialismo, que vem da nossa tradição ibérica.
ConJur — Por quê?
Luís Roberto Barroso — Em Portugal não se separava adequadamente a fazenda do rei da fazenda pública. Tanto que era um modelo em que o dinheiro público e o privado faziam parte do mesmo pacote. A própria colonização do Brasil era feita em parceria com o rei, como se fosse uma sociedade privada. Isso criou uma cultura que não separa bem, até hoje, o público do privado.
ConJur — Onde podemos observar, atualmente, manifestações e resquícios dessa cultura?
Luís Roberto Barroso — Por exemplo, na Constituição brasileira, que talvez seja a única no mundo que precisa dizer que o administrador público não pode fazer propaganda pessoal com dinheiro público. Também no fato de que foi necessária uma decisão do Supremo Tribunal Federal declarar que o nepotismo era prática inaceitável nos três poderes, para que isso começasse a fazer a parte da cultura brasileira.
ConJur — E como sanar esta disfunção?
Luís Roberto Barroso — Nós temos nos debruçado sobre a Constituição de 1988, nesse período democrático, para superar essa disfunção. Como ela é uma disfunção cultural é mais difícil, porque é muito arraigada na formação nacional.
ConJur — E o oficialismo, ao qual o senhor se referiu, o que seria?
Luís Roberto Barroso — É uma cultura que supõe que tudo deva passar pelo Estado. Portanto, no Brasil, todos os grandes projetos, em qualquer área, seja cultural ou empresarial, dependem das bênçãos do poder público com as politizações que isso envolve. O próprio capitalismo brasileiro é um capitalismo amplamente financiado com dinheiro público. Somos um país que vive na dependência do BNDES, dos fundos de pensão, da Caixa Econômica. Tudo depende do apoio, da bênção e dos favores do governo.
ConJur — Quais as consequências desse oficialismo?
Luís Roberto Barroso — A hostilidade do governo pode ser o fim de um bom projeto. Se o presidente da República ou alguém importante não gostar do presidente de uma empresa, isso pode significar até mesmo o fim da carreira deste.
ConJur — E sobre a terceira disfunção?
Luís Roberto Barroso — O autoritarismo também foi herdado da tradição portuguesa. Portugal foi o último país a abolir o tráfico de escravos e a acabar com o absolutismo e com a inquisição. Então, não é por acaso que temos uma formação autoritária, da qual progressivamente estamos nos libertando. É daí que vem a quebra de legalidades que se fez presente em tantos momentos do nosso país. Eu acho que nesta matéria de avanço institucional o Brasil contabiliza talvez os seus melhores momentos.
ConJur — Quais foram estes avanços?
Luís Roberto Barroso — Sob a Constituição de 1988, nós superamos os ciclos do atraso, superamos uma vocação golpista e de quebra da legalidade. Era tão ostensiva essa sucessão de quebras da legalidade que a gente nem mais se dava conta, mas se olharmos e fizermos um corte a partir de 1930, nós tivemos: A revolução de 1930, a revolução constitucionalista de 1932, a intentona comunista de 1935, o golpe do estado novo de 1937, a destituição do Getúlio em 1945, as rebeliões contra Juscelino Kubitschek em 1956, o veto à posse do João Goulart pelos ministros militares em 1961, o golpe militar de 1964, o ato institucional número 5 em 1968, o golpe dentro do golpe que foi a constituição em 1969, os anos de chumbo do governo, o fechamento do Congresso pelo presidente Geisel. Ou seja, a história brasileira é uma história da sucessão de quebras da legalidade, do desrespeito às regras do jogo. E nessa matéria nós conseguimos superar os ciclos do atraso, de modo que das três disfunções graves que eu apontei, dessa última nós conseguimos, eu creio, nos libertar.
ConJur — Por que o senhor acredita que o autoritarismo foi superado?
Luís Roberto Barroso — Por exemplo, o fato de o presidente Lula não ter cogitado um terceiro mandato. Uma democracia jovem ainda precisa desse ritual de eleições periódicas e de sucessões. Ele não ter sido mordido pela mosca azul naquela circunstância foi um atestado de maturidade da democracia brasileira. Mas o oficialismo e o patrimonialismo ainda marcam muito a formação nacional e cria uma sociedade que se acostumou a ser paternalizada pelo Estado, com todas as consequências que isso traz no plano político e no plano econômico. Um brasileiro típico acha que os recursos públicos são ilimitados e que o Estado pode e deve fazer tudo, quando governar é exatamente fazer escolhas trágicas e administrar recursos escassos.
ConJur — O senhor participou de uma banca que examinou trabalhos de jovens que estão iniciando no meio jurídico. O que o senhor acha desta geração que vem por aí?
Luís Roberto Barroso — Há pessoas que envelhecem achando que tudo está piorando. Eu acho exatamente o contrário. Há uma geração brilhante que não tem os mesmos traumas da nossa geração, que já não se assustam com as mesmas assombrações, que têm ousadia de pensar. Não podemos estar 30 anos mais velhos, ter mais estudo e achar que tudo tenha que estar no mesmo patamar que você chegou. O papel de um professor é identificar talentos e ajudar esse talento a se projetar. E esse prêmio [Mendes Junior] exibiu uma formação de esquerda, uma quantidade muito grande de jovens que já não pensam o mundo com os mesmo preconceitos e ideologias. O mundo ficou muito mais sutil.
ConJur — O que o senhor quer dizer quando usa o termo esquerda?
Luís Roberto Barroso — Esquerda hoje em dia significa acreditar que o papel principal do Estado é promover igualdade de oportunidades, é assegurar desde o início da vida que as pessoas possam competir nas mesmas condições. O que não significa, necessariamente, que o Estado deva ser protagonista do processo social e menos ainda do processo econômico. O Estado deve ser capaz de induzir o avanço do processo social de maneira adequada. Nestes trabalhos que analisei, apresentados pelos jovens, por surpreendente que pareça, a ideia mais recorrente é a de que o Estado deve ser correto e agir com boa-fé objetiva. Isso parece um truísmo, uma obviedade, mas eu acho que levado ao pé da letra seria uma revolução profunda e silenciosa no Brasil. O Estado cumprir as suas obrigações na data marcada tal como foi ajustado.
ConJur — Por que são poucas as iniciativas que visam a aprofundar debates sobre questões de raízes, como as conveniências administrativas do poder público se sobrepor ao interesse público?
Luís Roberto Barroso — Nós somos uma democracia nova. Está tudo acontecendo ao mesmo tempo. Portanto, o país tem muitas frentes e está administrando da maneira possível cada uma das suas circunstâncias. Há um debate sobre o papel do Judiciário, há um debate sobre a questão da reforma tributária, mas eu acredito que o país precise repensar a sua universidade.
ConJur — Repensar sob qual aspecto, quais mudanças são necessárias?
Luís Roberto Barroso — Eu sou a favor da universidade pública, mas acho que ela custa caro e tem um modelo de financiamento extremamente dependente do Estado, o que nos leva um pouco aquela ideia do paternalismo. A universidade tem que ser capaz de, no geral, se autofinanciar, porque um país pobre precisa de dinheiro é no ensino fundamental e no ensino médio. Mas, não e só isso. Precisamos repensar o papel das forças armadas em uma democracia pacifica. É preciso repensar a relação do Estado com os seus contratados. Mas como eu disse há muitas frentes simultâneas e o país está tentando se ajustar, romper velhas estruturas, superar antigos preconceitos.
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