Uma maçã perfeita?
Fernando Reinach
A maçã beira a perfeição. Não pede para ser descascada, possui encaixe para os dedos, faz "crac" quando enfiamos o dente e "croc" quando arrancamos um pedaço. É tímida com seu sumo, que não lambuza. O gosto é sentido sob ação dos dentes. Comer uma maçã é um ato voluptuoso. Foi com uma que a serpente tentou Adão e Eva, transformando prazer em pecado.
Mas a maçã tem um defeito, ela tem de ser comida inteira. Rompida a casca, exposta sua intimidade, ela escurece e muda de gosto. Quem tentou comer uma maçã lendo poesias, uma mordida após cada soneto, sabe disso. É impossível tentar os filhos com fatias de maçã na lancheira, eles rejeitam as fatias marrons. Mas, agora, a esperteza dos descendentes de Adão e Eva resolveu o problema e desenvolveu uma maçã perfeita, que não muda de cor.
A razão para o escurecimento da maçã é conhecida. Ele ocorre quando uma enzima chamada polyphenol oxidase (PPO) entra em contato com algumas moléculas presentes na maçã (a principal dessas moléculas é chamada de chlorogenic acid). A PPO oxida essas moléculas, alterando o sabor da maçã e suas qualidades nutricionais. Mas essa reação enzimática não faz parte da biologia normal da maçã, ela só ocorre quando as células da fruta são rompidas. Nas células intactas que compõem uma maçã, a PPO e as moléculas atacadas pela PPO ficam em compartimentos distintos e nunca se encontram.
É só quando as células são rompidas por uma faca, por nossos dentes ou por um espremedor de suco, que a separação entre esses compartimentos é rompida e a PPO entra em contato com as moléculas, catalisando a oxidação. As formas oxidadas dessas moléculas são marrons, o que explica o escurecimento da maçã e de seu suco.
Existem truques para evitar o escurecimento. O mais comum é adicionar antioxidantes às fatias de maçã (se você encontrar no supermercado fatias claras de maçã, pode ter certeza de que um pouco de antioxidante foi adicionado ao produto).
Outro truque é o usado pelas cozinheiras. Se você cortar a maçã e imediatamente a esquentar, ela não escurece. Isso ocorre porque a alta temperatura inativa (mata) a PPO, impedindo sua ação. É por isso que nas boas tortas de maçã as fatias ainda estão claras. Se a cozinheira cortar a maçã e demorar para colocar a torta no forno, a maçã fica escura e com gosto alterado.
O que os cientistas fizeram foi desenvolver uma maçã que praticamente não tem PPO no seu interior. Para isso, eles introduziram na maçã uma outra cópia dos genes da PPO que já existiam na fruta, mas que atuam bloqueando a produção de PPO. Como essa maçã modificada não possui PPO, quando ela é cortada, mordida ou triturada, a reação enzimática não ocorre, a maçã não muda de cor ou sabor, e não perde suas características nutritivas.
Durante os últimos 7 anos essa nova variedade de maçã foi estudada em detalhe. Ela apresenta as mesmas características nutricionais da maçã normal, não é mais suscetível às doenças e sua produtividade é idêntica às variedades clássicas. Como essa maçã ainda possui os genes da PPO, e nenhum gene novo foi introduzido, do ponto de vista do seu genoma ela é praticamente idêntica à maçã tradicional.
Neste mês, o governo americano aprovou o plantio comercial dessa nova variedade de maçã. É de se esperar que nos próximos anos vamos poder comer (lentamente) maçãs que não escurecem.
E, a partir de então, a volúpia, o amor e o pecado podem durar mais tempo. Ah!, ia esquecendo, essa nova maçã é transgênica.
FERNANDO REINACH É BIÓLOGO
Fonte: Artigo publicado no Estadão, em 21 de fevereiro de 2015.
http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,uma-maca-perfeita-imp-,1637498